Introdução
A montagem de biótopos é a simulação do habitat natural em seu aquário. Para se alcançar a beleza dos biótopos e o máximo de realismo é necessário o conhecimento dos locais e condições em que os organismos vivem é bastante importante, para tanto a caracterização de um biótopo envolve a discriminação das variáveis ambientais abióticas do lugar, como temperatura da água, coloração, pH, dureza, tipo de solo, incidência solar, profundidade etc.
Mas no caso da bacia Amazônica, que abrange cerca de 7 milhões de quilômetros quadrados em vários países da América do Sul, como delimitar o biótopo Amazônico? Além disso, considerando que na bacia Amazônica pode haver infinitas combinações de variáveis ambientais, ou seja, infinitos biótopos, como escolher uma região ou área como biótopo? Os rios afluentes, como o Negro ou Xingu, ou o próprio rio Amazonas poderiam ser usados para caracterizar um biótopo?
Se pensarmos na comunidade de peixes que habita um lago, por exemplo, facilmente poderemos reconhecer as condições em que eles vivem. Por outro lado, se pensarmos em uma montanha, poderemos conhecer a comunidade de espécies de besouros que habita aquela montanha. Note que existe uma relação dupla entre comunidade de espécies e o lugar onde elas vivem, ou seja, a definição de biótopo depende da referência que se adota. Por isso, é possível caracterizar o biótopo a partir de uma comunidade, como o lago dos peixes e também é possível caracterizar uma comunidade a partir de uma delimitação geográfica, como o exemplo dos besouros da montanha. No entanto, ao delimitar um biótopo por uma formação geológica ou climática corre-se o risco de agrupar espécies que não compartilham um relacionamento ecológico e que foram encontradas juntas porque são amplamente distribuídas. Neste caso, o biótopo perderia sua identidade como “unidade natural” por não apresentar espécies exclusivas (= endêmicas) e que estivessem inter-relacionadas com as demais. A saída é, primeiramente, delimitar uma comunidade coesa e discreta que seja uma unidade tanto evolutiva quanto ecológica (= área de endemismo) e a partir disso verificar no ambiente as condições em que eles vivem.
Um trabalho publicado recentemente apresenta uma hipótese de caracterização de áreas de endemismo na Amazônia para os peixes (Hubbert & Renno, 2006). O objetivo do trabalho foi entender a configuração espacial atual da comunidade de peixes de água doce na América do Sul. Os autores utilizaram uma metodologia chamada de PAE (Parsimony Analysis of Endemicity) que utiliza um algoritmo de parcimônia para agrupar áreas pelas espécies. O resultado é o reconhecimento de áreas que apresentam espécies exclusivas e que configuram unidades com identidade própria de espécies. Os resultados delimitaram quatro áreas de endemismos na Bacia Amazônica e uma nas Guianas
1) Alto Amazonas: compreende a parte oeste da Bacia Amazônica formada pelos rios Japurá (Colômbia, Brasil), Putumayo (Colômbia, Equador, Peru, Brasil), Maranon (Peru), Ucayali (Peru), Purus (Peru, Brasil), Madre de Dios (Bolívia, Brasil), Guaporé (Bolívia, Brasil) e Solimões (Peru, Brasil).
2) Baixo Amazonas: compreende o Rio Amazonas (Brasil) e os seguintes afluentes: baixo do rio Branco (Brasil), baixo do rio Negro (Brasil), Madeira (Brasil), baixo do rio Tapajós (Brasil) e baixo do rio Xingu (Brasil).
3) Orinoco - Alto do Rio Negro: compreende a porção norte da bacia e os afluentes desembocam na margem esquerda do Amazonas. Alto do rio Negro (Colômbia, Venezuela, Brasil), cabeceira do rio Branco (Brasil), rio Orinoco (Venezuela).
4) Tocantins – Xingu: compreende a porção sul da bacia e os afluentes desembocam na margem direita do Amazonas. É caracterizado pelo rio Juruena (Brasil), Teles Pires (Brasil), parte do rio Tapajós (Brasil), Xingu (Brasil), Araguaia (Brasil), Tocantins (Brasil).
5) Guiana: compreende os rios Essequibo (Guiana), Courantjin (Guiana), Suriname (Suriname), Maracaibo (Suriname?), Mana (Guiana Francesa), Sinnamary (Guiana Francesa), Apuruaque (Guiana Francesa) e Oiapoque (Guiana Francesa).
Objetivo
Assumindo que as áreas delimitadas no estudo¹ formam comunidades endêmicas e unidades biológicas com identidade de espécies, quais são as espécies de peixes ornamentais que ocorrem nestas áreas? Quais são os peixes ornamentais que ocorrem nestes biótopos. Com essas informações, a montagem de biótopos em aquários poderá ser feita com maior precisão em relação à localização geográfica e à composição da comunidade de peixes.
Metodologia
- Delimitação dos biótopos: baseada na hipótese de Hubert & Renno (2006) de áreas de endemismo;
- Fonte geográfica de peixes ornamentais: FishBase e Neodat II (Fig. 2)
- Consulta dos nomes comuns de peixes ornamentais: A Era de Aquários > Peixes de Aquários (Galeria)
- Número de espécies de peixes ornamentais: 69 spp. (Famílias Characidae, Cichlidae e Ordem Siluriforme).
- Programa e dados ambientais: ArcGIS, mapas da América do Sul e principais rios.
Resultados
Comunidade de peixes ornamentais por Biótopo
Com a construção do banco de dados geográficos de peixes ornamentais foi possível a confecção do mapa com as localidades de ocorrência. Foram analisados dados espaciais de 69 espécies de peixes ornamentais das famílias Characidae e Cichlidae e da Orderm Siluriformes, totalizando 5.385 pontos de ocorrência na Bacia Amazônica e arredores .
O passo seguinte foi a realização da intersecção entre os pontos de ocorrência dos peixes e as áreas de endemismos assumidas como hipótese para a indicação de biótopos. Com isso, foi possível verificar as espécies de peixes ornamentais que ocorrem em cada biótopo.
O Alto Amazonas foi o biótopo que abrigou o maior número de espécies. Cerca de 70% (n=50) das espécies analisadas podem ser encontradas neste biótopo, sendo 12 espécies exclusivas (25%) . É a maior área de endemismo da Bacia Amazônica e alberga oito dos grandes rios, além dos afluentes de suas próprias bacias.
O Baixo Amazonas abrigou cerca de 60% (n=41) das espécies de peixesm sendo apenas uma espécie exclusiva . O biótopo compreende o Rio Amazonas propriamente dito, que antes de se encontrar com o Rio Negro é chamado de Solimões. Além disso, a área compreende partes baixas dos rios afluentes, tanto da margem direita quanto esquerda, até a foz do Amazonas.
O biótopo Orinoco – Alto do Rio Negro compreende a parte superior do Rio Negro e o Rio Orinoco. O Orinico é o principal rio da Venezuela. Ele forma uma bacia própria que, além da Venezuela, abrange parte da Colômbia. Na região do alto do Orinoco há um canal chamado Cassiquiare que une o Orinoco ao Rio Negro. É uma formação geológica rara e conecta duas importantes bacias da América do Sul. O biótopo contem 45 espécies de peixes ornamentais (65%) , sendo 11 delas exclusivas do biótopo (25%).
O biótopo Tocantins – Xingu foi o que abrigou o menor número de espécies de peixes analisadas, 19 espécies (28%) e nenhuma exclusiva .
O biótopo Guiana é o único que não faz parte da bacia Amazônica. É composto por oito grandes rios que correm para o norte e desembocam no Atlântico. Foram encontradas 33% das espécies analisadas (n=23) e nenhuma exclusiva .
A hipótese de Hubert & Renno (2006) apresenta certa congruência com padrões de áreas encontrados para organismos terrestres na Amazônia. A presença de espécies exclusivas nos biótopos corrobora a hipótese das áreas como endêmicas.
Lista de peixes ornamentais encontrados no biótopo do Alto Amazonas. (* espécies exclusivas do biótopo).
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Lista de peixes ornamentais encontrados no biótopo do Baixo Amazonas. (* espécies exclusivas do biótopo).
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Lista de peixes ornamentais encontrados no biótopo do Orinoco – Alto do Rio Negro. (* espécies exclusivas do biótopo).
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Lista de peixes ornamentais encontrados no biótopo do Tocantins - Xingu
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Lista de peixes ornamentais encontrados no biótopo da Guiana.
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Peixes ornamentais exclusivos por biótopo.
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Discussão
Um rio pode ser um biótopo?
Sim e não. Como vimos anteriormente, o critério para a delimitação de um biótopo depende da referência adotada (comunidade ou geografia) e por isso é subjetivo. Em relação às condições abióticas pode ser que ao longo de um rio elas se mantenham semelhantes. Contudo, quando se trata de rios de grande extensão a variação pode ser bastante grande. As condições podem ser totalmente diferentes na nascente, no percurso e na foz.
Em relação à composição de peixes, as áreas delimitadas no estudo¹ evidenciaram que o mesmo rio pode apresentar composição de peixes diferentes. Por exemplo, o Rio Negro apresenta uma fauna mais parecida com a fauna do rio Orinoco na sua parte alta, próxima à nascente. Já a parte baixa do Rio Negro apresenta uma íctiofauna mais parecida com a do Rio Amazonas.
Entretanto, existem rios que estão totalmente contidos nas áreas de endemismo. É o caso de alguns rios do Alto Amazonas, os rios Tocantis e Xingu ([ToXing]) e outros. Esses casos são interessantes, pois tanto o critério geográfico quanto o da composição da comunidade podem ser adotados na delimitação do biótopo.
Por isso, a delimitação de um biótopo depende do critério adotado. Além disso, a extensão do rio e a sua trajetória podem influenciar na heterogeneidade de condições ambientais encontradas.
Hierarquia de Biótopos
A classificação de biótopos é influenciada pela a escala de referência e elas podem ser hierarquizadas. Por exemplo, poderíamos ir a um extremo e adotar o biótopo “Planeta Terra”. Colocaríamos dentro de um aquário todos os peixes possíveis e em todas as condições imagináveis. Ou poderíamos ir ao outro extremo e montar um biótopo “margem esquerda do rio Ribeirinho à 50 metros da nascente”. O que quero dizer é que os biótopos dependem da escala e por isso, podem conter outros biótopos.
No caso da Bacia Amazônica, podemos montar os biótopos com mais de uma área de endemismo. Por exemplo, existem espécies de peixes que ocorrem no Alto Amazonas e no Baixo Amazonas, por que não montar um biótopo Alto-Baixo Amazonas? Ou tomar as espécies de ampla distribuição e montar um Amazônico sensu latu? Isso tudo é possível.
Também é possível delimitar os sub-biótopos, ou seja, regiões mais específicas e detalhadas dentro de um biótopo. Só que para isso é necessário que tenhamos mais informações disponíveis, tanto da comunidade de peixes, plantas quanto das condições do rio. A seguir há um pequeno estudo do caso do biótopo “Alto do Rio Negro” e informações para a montagem.
Peixes ornamentais encontrados em mais de uma área.
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Construção de Biótopos: o caso do Rio Negro
Tendo o conhecimento das espécies que ocorrem em um determinado local já é um bom passo para a construção de um biótopo bem sucedido. Contudo, isso não é tudo, é apenas o começo. Como vimos antes, o biótopo em si é constituído por todas as variações abióticas do local. Agora, temos o conhecimento dos peixes que ocorrem lá, mas não sabemos quase mais nada sobre o local: quais são os parâmetros da água (temp, pH, dureza, coloração)? O rio sofre oscilações de nível ao longo do ano? Quais são as conseqüências disso? O rio é raso ou profundo? Que plantas aquáticas habitam o local? Como é o fundo do rio (areia, cascalho)?
É evidente que a reconstrução perfeita de um biótopo nunca será atingida. Mas é certo que podemos pesquisar e avançar no detalhamento desses aspectos e montar um biótopo bem semelhante ao encontrado na natureza.
O biótopo do Rio Negro é o mais famoso em reconstruções pela sua característica de apresentar águas escuras com aspecto de chá (blackwater). Mas não é só isso. O Rio Negro sofre oscilações no nível de água durante o ano. Entre o ponto mais baixo da seca e o mais alto da cheia, a variação é de 9 a 12 metros. A conseqüência disso é que na época de cheia as árvores ficam submersas e o fundo do rio se torna uma floresta inundada. É possível encontrar troncos, galhos e folhas caídas no fundo. Na seca é possível visualizar as bancadas e praia de areia que se formam às margens do rio. A água é pobre em nutrientes e ácida devido à decomposição de matéria orgânica. Se tomarmos os parâmetros de tolerância dos peixes que ocorrem lá podemos constatar que o biótopo pode ter o pH entre 4,95 e 6,55, dureza entre 2,7 e 12,7°dH e a temperatura entre 23°,8 e 27,8°.
Na delimitação do biótopo Orinoco – Alto do Rio Negro o Rio Negro não está inserido na sua completude nesse biótopo. A parte do baixo Rio Negro pertence ao biótopo Baixo Amazonas. Isso significa que, em relação a composição de espécies, a região mais próxima da nascente do Negro é diferente em relação a sua foz. Por isso, ao delimitar o biótopo Alto do Rio Negro foi utilizado o critério da comunidade de peixes da área e o critério geográfico do “Rio”. A intersecção desses dois critérios possibilitou a construção de um biótopo com identidade própria de espécies e um componente geográfico bem delimitado. Podemos, então, considerar que este seja um sub-biótopo do Orinoco – Alto do Rio Negro.
Considerações Finais
- As análises foram feitas com dados atualmente disponíveis. Por isso, os resultados podem se modificar assim que novas coletas e informações forem futuramente adquiridas.
- Para a região Amazônica, o critério da composição da comunidade para delimitar o biótopo é mais indicado, pois consiste em unidades espaciais de mesma história evolutiva e os rios apresentam grande heterogeneidade ambiental.
- Quando possível, a intersecção dos dois critérios (comunidade e geografia) é o mais indicado na reconstrução fiel da natureza.